Carta ao SPC

[Este conto foi escrito em setembro de 2009]

Querido Sérgio Porto Casa, venho através desta, escrita em computador, porque já não me encontro mais em condições de escrever manualmente devido ao advento desta nova tecnologia. Na verdade tenho que lhe confessar que não sincronizo mais a rapidez dos pensamentos com a lentidão das mãos, tendo neste novo invento, encontrado um parceiro ideal para minhas necessidades imediatas de erudição.

Em nossa última correspondência, lembro-me muito bem que os erros de sintaxe, concordância, gramática entre outros, o deixou tão nervoso a ponto de me escrever dizendo que nunca mais leria uma missiva minha. Pois agora, veja bem, tenho a ajuda de um corretor ortográfico que, se não resolve, ajuda bastante na compreensão daquilo que desejo lhe informar. Inclusive por falar nisso, escrevo também para lhe dar conhecimento de um fato muito grave que aconteceu aqui.

Mas me deixe antes de qualquer coisa me desculpar por esta carta em tão impessoal escrita. Sabemos que o computador é uma máquina maravilhosa, mas que infelizmente tira a pessoalidade das coisas, inclusive da habitualidade de reconhecer imediatamente a letra do remetente. Veja, se não lhe informo quem escreve, esta poderia ser a letra de qualquer pessoa em qualquer lugar, pois é assim que se comporta o editor de textos de quem tem em mãos esta ferramenta.

Inclusive tenho que admitir, e você também, que o papel também não é lá essas coisas, um branco azedo e árido, pois sabemos que antes podíamos até colecionar os blocos de cartas com suas cores e desenhos extraordinários. Lembro-me de quando pequena minha mãe ter uma coleção considerável destes blocos tão lindinhos.

Tentei até escolher uma fonte bonitinha para lhe proporcionar uma leitura mais cômoda, uma que imitasse a escrita manual, mas veja você, só encontrei esta aqui mesmo. Lembro até que meu professor de informática me disse que chamamos essas letras de: fonte!

Oh! Claro! isso me fez lembrar do assunto que estou querendo tratar com você, e posso até adivinhar que já deve estar ansioso para que eu lhe dê logo a informação que prometi no começo. Pois não é que a prefeitura construiu na praça do centro velho uma linda fonte? Ao entardecer eles ligam o balé das águas e as luzes coloridas, fica uma beleza. Outro dia o prefeito esteve lá para inaugurá-la, veio até um cantor sertanejo para alegrar os munícipes, mas infelizmente essas coisas não duram muito e não demorou para que se encontrasse lá na fonte mendigos dormindo nos bancos e uma quantidade impressionante de cocô de cachorro por toda a calçada ao redor.

Ah!, que saudades da velha praça onde passeávamos juntos eu, você e sua mãe, lembra? Lembra da sua mãe ainda?, faz muito tempo que você me deixou aqui para cuidar dela e não deu mais notícias. Eu sei que existiu um motivo muito forte para você ir, mas lhe garanto que agora existe um outro mais forte ainda para que volte imediatamente. Sei que quando trabalhava aqui na prefeitura como secretário de obras, não pensaria duas vezes em deixar as coisas arrumadas e funcionando na cidade, inclusive a fonte, motivo pelo qual deve atribuir sua volta ao lar. Veja só, e isso aconteceu durante a temporada de chuvas, sim, sei que você vai me dizer que não há temporada de chuvas em nossa cidade, mas você sabe como está o clima no planeta, e nossa cidade infelizmente não ficou fora do circuito das tempestades e furacões. Mas como eu ia lhe dizendo linhas acima, o que aconteceu, aconteceu na nossa tão querida e formosa fonte e foi exatamente na temporada mais úmida que tivemos aqui nos últimos anos. Aliás, permita-me perguntar: não estou lhe aborrecendo com esta conversa toda, estou? Sei que você não gosta muito de falar do passado, mas é importante que eu lhe conte essa história desde o começo, assim inclusive, consigo melhorar ainda mais a minha digitação. Tem uma vaga de emprego num novo escritório de advocacia e eles pedem fluência de escrita digital.

Mas vamos lá ao que interessa não?!? Estávamos eu e sua mãe passeando no centro velho, olhando as lojas e aproveitando o calor e o sol da manhã… Sim, sei que disse que estava chovendo, mas o dia começou belíssimo e decidimos ficar por lá mesmo. Almoçamos no Café Novo, lembra dele?, está sob nova direção agora! Foi um dia bonito, ou teria sido se não chovesse tanto como choveu depois do meio-dia.

Ah! Puxa, parece que já estou me perdendo em tantas conversas paralelas, né?

Bom! Estávamos sentadas na praça vendo os pombos que iam e vinham, as vizinhas passeando com seus cachorros de bolso quando sentimos o primeiro pingo, e até ali não imaginávamos que aquele seria o primeiro de muitos outros que acarretariam a tragédia que estou lhe narrando.

Lembro que estava sentada de frente para a loja de colchões e vi o vendedor vender seu primeiro travesseiro do dia, então os pássaros de repente bateram em retirada numa revoada ansiosa e extravagante, vi um grande clarão e quase imediatamente um trovão ensurdecedor. Uma grande gota pesada e gelada caiu em minha cabeça, e antes que eu pudesse atravessar a rua segurando nossas compras numa mão e a sua mãe na outra, uma tromba d’água desabou do céu incrivelmente azul. Tentei me abrigar embaixo do abacateiro, mas as gotas tão grandes e pesadas pareciam a fruta caindo em nossas cabeças. A rua se encheu imediatamente e o céu escureceu como se fosse meia-noite; as pessoas assustadas gritavam e corriam sem direção tentando abrigar-se em qualquer lugar que achasse seguro. De repente perdi sua mãe de vista, mas…ufa!, consegui salvar as compras.

Estou triste e quase não consigo terminar de lhe contar.

Procurei sua mãe durante toda a tarde debaixo daquele temporal, tomando o cuidado de deixar as compras guardadas no supermercado para ir buscar mais tarde. Você sabe, ela é esperta e devia ter encontrado um bom lugar para se esconder do inferno em forma de água que caiu sobre nossas cabeças.

Então foi que a fonte estourou com o volume das águas do rio que transbordou e invadiu a cidade. Voaram cacos de anjos e sereias para todos os lados, luzes piscando, metal retorcido, mas graças à Deus consegui escapar deles.

Voltei então ao supermercado para buscar as compras e fui procurar sua mãe. Disseram-me que ela havia se abrigado debaixo de um dos anjos da fonte, outros disseram que ela havia voltado para casa – o que me deixou mais tranqüila.

Consegui depois de muito custo voltar para casa e saber se estava tudo bem. Ah!, esqueci de lhe dizer que isso aconteceu faz uns quatro meses, mas só agora tive tempo suficiente para lhe escrever, porque as aulas de informática tem tomado muito o meu tempo, contudo elas estão me fazendo muito bem, ajuda a relaxar e esquecer alguns fantasmas que rondam a minha cabeça. Depois daquele dia não caiu mais nenhuma gota de chuva por aqui, parece até que o dilúvio fora encomendado. A cidade está linda como sempre e a fonte está em sua faze final de restauração. Agora preciso terminar de lhe contar as novidades porque tenho que terminar uma petição. Puxa, é mesmo, esqueci de lhe contar: com as aulas consegui o emprego no escritório de advocacia, eles não pagam muito bem, mas pra começar está bom. Pretendo no ano que vem cursar o vestibular para entrar na faculdade, quero ser advogada; não lembro se já te contei isso. Contei? Ah!, nossa, como sou distraída, esqueci de lhe contar o fim dessa história. Então, velho primo SPC, quando volta para casa novamente? Quando vem para visitar sua velha cidade natal e colocar uma rosa no túmulo de sua mãe?